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quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Homenagem a Vergílio Ferreria: "Aparição"



"...Sofia me esperava toda de preto. Não se moveu. Encostada, pelo lado de dentro, à meia-porta fechada, a aresta da porta cortava-a de alto a baixo, dividindo-a pelo meio dos olhos, dos seios, das pernas. A criadita desparecera, ficara-mos nós, sozinhos, sob a cúpula claustral do átrio, com o rumor fantástico da chuva na rua. Avancei enfim; Sofia, sem se desencostar, entregou-me a mão esquerda, abandonada, como se ma desse a beijar.
-Sofia!
-Olá, doutor.
         Desencostou-se então da porta e foi a uma prateleira de livros. Veio depois com eles, erguidos ao alto nas pontas dos dedos, como nos cafés os criados transportam às vezes as bandejas. O vestido de veludo negro, colado ao corpo, esticado até ao pescoço e até aos limites dos braços finos, iluminava-lhe a face jovem, a doçura quente da nuca sob os cabelos puxados para o alto, a fragilidade das mãos tão brancas e subtis. Mas o que sobretudo se iluminava era o seu maravilhoso olhar, esse olhar de uma violência ingénua, secreto e húmido e fulgurante como um primeiro pecado. Estávamos sentados a um ângulo de uma mesa, Sofia pousara as mãos sobre o livro aberto. E então irresistivelmente tomei-lhas nas minhas. Palpava-as, olhava-as, olhava-as na sua alvura de creme, nos fios azuis das veias. Os dedos curvavam-se, lineares, até aos bicos das unhas, em curvas longas como o eco de uma harpa. Mas sem gestos, abandonadas à minha procura, pareciam-me mortas. Então virei-as: por dentro tinham menos mistério, menos vida. Ou talvez que tudo fosse de estarem frias. Tive um gesto de as aquecer. De súbito, porém, qualquer coisa se separou em mim mesmo e senti que o meu gesto se quebrava. Ergui os olhos a medo para Sofia. Ela olhava-me impassível:
         -Tenho sempre as mãos frias. Mesmo no Verão.
Como eu já não lhe investigava as mãos e lhas tinha para ali desaproveitadas, ela retirou-mas para procurar um estojo, donde tirou uma longa boquilha em que acendeu um cigarro.
         -Que me diz ao meu escritório privativo?
         Era uma sala pequena de abóbada alta, dois maples, uma mesa, estantes e alguns quadros. Uma grande janela dava para o pátio deserto, onde a água estalava sem cessar. Sofia acendeu a luz e fechou a janela. E neste claustro de intimidade, com a chuva afastando-nos a cidade para longe, sentíamo-nos numa solidão para os dois e era como se o mistério de Sofia me fosse mais revelado ou menos invulnerável.
         -Está-se bem aqui - disse eu.
         O calor fechado pelo irradiador elétrico, o silêncio inconsútil, vigiado pela chuva, a nossa presença defendida, como que legitimavam a minha excitação, o meu apelo voraz que subia em mim. Mas havia a conveniência, esse plano neutral em que podíamos comerciar.
         E perguntei:
         -Estudou a lição?
         -Não peguei em livro - disse ela, sorrindo por entre o fumo do cigarro. -Não está contente?
         -Contente? Porquê?
         -Ouça, doutor: se alguma coisa me preocupou sempre foi ser consequente, unir o que faço ao que sinto. Porque não faz o mesmo?
         -Como não faço o mesmo?
         -Oh, não faz...Se o fizesse, já me tinha beijado..."
       

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