"...Sofia me
esperava toda de preto. Não se moveu. Encostada, pelo lado de dentro, à
meia-porta fechada, a aresta da porta cortava-a de alto a baixo, dividindo-a
pelo meio dos olhos, dos seios, das pernas. A criadita desparecera, ficara-mos
nós, sozinhos, sob a cúpula claustral do átrio, com o rumor fantástico da chuva
na rua. Avancei enfim; Sofia, sem se desencostar, entregou-me a mão esquerda,
abandonada, como se ma desse a beijar.
-Sofia!
-Olá, doutor.
Desencostou-se então da porta e foi a
uma prateleira de livros. Veio depois com eles, erguidos ao alto nas pontas dos
dedos, como nos cafés os criados transportam às vezes as bandejas. O vestido de
veludo negro, colado ao corpo, esticado até ao pescoço e até aos limites dos
braços finos, iluminava-lhe a face jovem, a doçura quente da nuca sob os
cabelos puxados para o alto, a fragilidade das mãos tão brancas e subtis. Mas o
que sobretudo se iluminava era o seu maravilhoso olhar, esse olhar de uma
violência ingénua, secreto e húmido e fulgurante como um primeiro pecado.
Estávamos sentados a um ângulo de uma mesa, Sofia pousara as mãos sobre o livro
aberto. E então irresistivelmente tomei-lhas nas minhas. Palpava-as, olhava-as,
olhava-as na sua alvura de creme, nos fios azuis das veias. Os dedos
curvavam-se, lineares, até aos bicos das unhas, em curvas longas como o eco de
uma harpa. Mas sem gestos, abandonadas à minha procura, pareciam-me mortas.
Então virei-as: por dentro tinham menos mistério, menos vida. Ou talvez que
tudo fosse de estarem frias. Tive um gesto de as aquecer. De súbito, porém,
qualquer coisa se separou em mim mesmo e senti que o meu gesto se quebrava.
Ergui os olhos a medo para Sofia. Ela olhava-me impassível:
-Tenho sempre as mãos frias. Mesmo no
Verão.
Como eu já não lhe
investigava as mãos e lhas tinha para ali desaproveitadas, ela retirou-mas para
procurar um estojo, donde tirou uma longa boquilha em que acendeu um cigarro.
-Que me diz ao meu escritório
privativo?
Era uma sala pequena de abóbada alta,
dois maples, uma mesa, estantes e
alguns quadros. Uma grande janela dava para o pátio deserto, onde a água
estalava sem cessar. Sofia acendeu a luz e fechou a janela. E neste claustro de
intimidade, com a chuva afastando-nos a cidade para longe, sentíamo-nos numa
solidão para os dois e era como se o mistério de Sofia me fosse mais revelado
ou menos invulnerável.
-Está-se bem aqui - disse eu.
O calor fechado pelo irradiador
elétrico, o silêncio inconsútil, vigiado pela chuva, a nossa presença
defendida, como que legitimavam a minha excitação, o meu apelo voraz que subia em
mim. Mas havia a conveniência, esse plano neutral em que podíamos comerciar.
E perguntei:
-Estudou a lição?
-Não peguei em livro - disse ela,
sorrindo por entre o fumo do cigarro. -Não está contente?
-Contente? Porquê?
-Ouça, doutor: se alguma coisa me
preocupou sempre foi ser consequente, unir o que faço ao que sinto. Porque não
faz o mesmo?
-Como não faço o mesmo?
-Oh, não faz...Se o fizesse, já me
tinha beijado..."
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