162.
Tudo quanto desagradável nos sucede na vida – figura
ridículas que fazemos, maus gestos que temos, lapsos em que caímos de qualquer das
virtudes – deve ser considerado como meros acidentes externos, impotentes para
atingir a substância da alma. Tenhamo-los como dores de dentes, ou calos, da
vida, coisas que nos incomodam mas são externas ainda que nossas, ou que só tem
que supor a nossa existência orgânica ou que preocupar-se o que há de vital em
nós.
Quando atingimos
esta atitude, que é, em outro modo, a dos místicos, estamos defendidos não só
do mundo mas de nós mesmos, pois vencemos o que em nós é externo, é outrem, é o
contrário de nós e por isso o nosso inimigo.
Daí Horácio, falando do varão justo, que ficaria impávido
ainda que em torno dele ruísse o mundo. A imagem é absurda, justo o seu
sentido. Ainda que em torno de nós rua o que fingimos que somos, porque
coexistimos, devemos ficar impávidos – não porque sejamos justos, mas porque
somos nós, e sermos nós é nada ter que ver com essas coisas externas que ruem,
ainda que ruam sobre o que para elas somos.
A vida deve ser, para os melhores, um sonho que recusa a confrontos.
239.
Cansamo-nos de tudo, exceto de compreender. O sentido da
frase é por vezes difícil de atingir.
Cansamo-nos de pensar para chegar a uma conclusão, porque
quanto mais se pensa, mais se analisa, mais se distingue, menos se chega a uma
conclusão.
Caímos então naquele estado de inércia em que o mais que
queremos é compreender bem o que é exposto – uma atitude estética, pois que
queremos compreender sem nos interessar, sem que nos importe que o compreendido
seja ou não verdadeiro, seja que vejamos mais no que compreendemos senão a
forma exata como foi exposto, a posição da beleza racional que tem para nós.
Cansamo-nos de pensar, de ter opiniões nossas, de querer
pensar para agir. Não nos cansamos, porém, de ter, ainda que transitoriamente,
as opiniões alheias, para o único fim de sentir o seu influxo e não seguir o
seu impulso.
295.
O dinheiro é belo, porque é uma libertação.
Querer ir morrer a Pequim e não poder é das coisas que pesam
sobre mim como a ideia dum cataclismo vindouro.
Os compradores de coisas inúteis sempre são mais sábios do
que se julgam – compram pequenos sonhos. São crianças no adquirir. Todos os
pequenos objetos inúteis cujo acenar ao saberem que têm dinheiro os faz
comprá-los, possuem-os na atitude feliz de uma criança que apanha conchinhas na
praia – imagem que mais do que nenhuma dá toda a felicidade possível. Apanha
conchas na praia! Nunca há duas iguais para a criança. Adormece com as duas
mais bonitas na mão, e quando lhas perdem ou tiram – o crime! Roubar-lhe
bocados exteriores da alma! Arrancar-lhe pedaços de sonho! – chora como um Deus
a quem roubassem um universo recém-criado.
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